A RAPOSA
As montanhas estavam cravejadas de pinheiros frondosos;
As suas vertentes eram um hino à vida;
Os seus cumes, bordados a verde.
Por onde quer que passássemos, o cheiro a resina investia-nos as narinas.
Além, ao fundo dos declives, pelos vales bordejados de fetos, o fragor das águas.
Os bichos aninhavam, no gasalho das tocas e dos galhos, as crias.
O sol entrava pelas copas fogosas num murmúrio de paz
E a chuva enchia o útero da terra pelas raízes sedentas.
No recato da floresta, tudo tinha um sentido qualquer:
A formiga na caruma, a ameaça dos lobos ou até a mordedura da serpente.
Quando agora, passando pela floresta antiga, nos atrevemos a fitá-la,
Só um vestígio, um arremedo, nos relembra o poder da vida.
Em seu devastador anseio de tudo consumir,
O fogo convertera as encostas num campo de morte e desolação.
Somente as cinzas cobrem as vertentes esvaídas.
De repente, olhamos, surpresos, o cume da ravina;
Ali, parece ter sobrado ainda um fragmento de vida:
Um vulto fareja uma negrura queimada.
Os binóculos nos acercam das proximidades do evento:
Uma raposa que torna junto ao corpo do amante,
Carbonizado na voracidade do lume,
E dali não sai, exigindo à vida que desponte e se refaça
Com a simples presença do amor!
A PERGUNTA
Às vítimas de Beslan [Ossétia do Norte]
De manhã, lá partiram rumo à escola,
Rindo e brincando pelo caminho ladeado de flores,
Tão tranquilos que nem pressentiram, ao longe,
Aproximar-se o azedume da vida.
Na escola, sentados, colheram o saber inútil...
Acabado o tempo do dever, arrumaram-no, alegres, nas mochilas
E correram à praça da cidade,
Onde espantaram os pombos e jogaram às escondidas.
Espelhada nos seus olhos a euforia da vida,
Nada podia ocultar o futuro antecipado
Nos gritos que a praça aceitou.
Às seis horas e cinco minutos, um rombo surdo atroou.
Um cheiro a medo estacou o dia.
E as crianças que, há breves momentos, riam e brincavam,
Eram agora um feixe de morte no rossio da cidade:
Os olhos longínquos e o sangue detido nos canais da vida.
Por que razão tudo isto nos ultraja e nos insulta
É pergunta nunca feita pelos anjos da morte!
TE AMEI
Te amei, amor,
Na fria voragem do caminho,
Quando o vazio nos carregou
E a raridade da hora nos prendeu.
Tu, esse instante que no tempo se encontrou,
Esse rumor indecifrável
Nas torrentes de ruído abrupto,
Esse grito que desmente a morte...
Quando doía calcular a vida
E o caos nos infectava o cio,
Te amei com desmedido anseio,
No absurdo das palavras ditas
Ou dos gestos consumados.
Hoje beijo as tuas formas inquietas,
Devorando a maciez dos seios
Ou a largura maternal das coxas.
E logo, meu amor?
Depois do tempo, há lugar ainda
Para o corpo do amor inteiro
Onde nos damos e, dando, nos colhemos?
Jorge Paulo
biografia:
Nasceu em Lisboa.
Acredita num Deus que é de todos os homens e não pertença exclusiva de alguém em particular.
Acredita na bondade humana e na capacidade que cada ser humano tem para se tornar melhor, apesar de tudo o que a experiência mostra.
É professor numa escola pública e na Universidade.
Investiga na área da Linguística.